Conto postado anteriormente na Amora Literária. Lá tem um monte de coisa bonita, passa lá (:
“Todos temos um
segredo trancado a sete chaves no sótão da alma.”
Marina – Carlos Ruiz Zafón
—
Talvez a gente seja feito de fechaduras. – ela pontuou depois de alguns
instantes calada.
A
voz suave sempre agravada aos ouvidos, mas os pensamentos eram muito mais
difíceis de decifrar do que aparentava. Ele encarou-a confuso, buscando
mergulhar nos olhos que não eram da cor do mar, mas ainda assim pareciam ter a
profundidade de um oceano.
—
O que quer dizer? – perguntou por fim.
—
Exatamente o que disse. – a frase poderia soar grosseira para qualquer um, mas
ele se acostumara com suas expressões, conhecia-as sem precisar entendê-las. –
Somos feitos de fechaduras, como uma casa em que você precisa atravessar várias
portas para chegar ao sótão, só que para alguns as portas estão trancadas.
—
Não seria mais como um cofre?
—
Poderia ser, mas os cofres geralmente guardam coisas de valor. Já os sótãos
escondem aquilo que tentamos esquecer ou não vemos mais utilidade. Acho que no
caso das pessoas, é só o que queremos esquecer.
—
Ou esconder.
—
A gente sempre esconde o que quer esquecer.
—
Mas nem sempre esquecemos o que queremos esconder.
Ela
virou o rosto. Tirando-o daquele mar negro que era seu olhar. Escondendo o que
quer que houvesse lá no fundo.
—
Tem razão.
—
Acho que li em algum lugar algo sobre isso. Sobre segredos escondidos no sótão
da alma.
—
Eu tenho certeza que li. Na época lembro que não tinha entendido, mas pensando
melhor hoje vejo que o autor tinha razão.
Ela
parou, mas ele apenas esperou por uma continuação. Imaginando que o silêncio
seria um incentivo.
—
Sabe, a gente pode trancar nossos segredos no sótão da alma, mas isso não quer
dizer que ninguém nunca vai descobri-los. Quero dizer, se somos como uma casa e
nossa alma é nossa propriedade, nós temos todas as chaves, não temos? Podemos
abrir as portas uma a uma e mostrar o sótão para algum visitante.
—
Mas às vezes a gente perde as chaves da própria casa.
—
Não chegamos a perder, só esquecemos onde estão guardadas.
—
Exatamente. Nesse caso, a casa continua trancada.
—
Até você encontrar as chaves. Geralmente a gente esquece onde guarda as coisas
que nunca usa. Quero dizer, se a gente nunca destranca pra ninguém, fica cada
vez mais difícil conseguir se abrir pra alguém.
Foi
a vez dele ficar sem resposta. Sabia que era sua vez de continuar, sempre sabia
quando ela terminava. A garota tinha razão, como costumava ter, talvez aquele
fosse o problema de trancar tanto a casa.
—
A gente pode acabar esquecendo como levar os visitantes até o sótão.
—
Não é esquecer. Podemos até ter a intenção, mas não sabemos mais como chegar
até lá.
—
Mas o trecho, me lembrei dele, era seguido por “esse é o meu”. Até o autor
revelava os segredos da personagem.
—
Eu não disse que nunca revelamos. Pelo contrário.
—
Já descobriu como chegar ao sótão quando se perdeu as chaves?
Ela
hesitou. Sabia a resposta, mas não tinha certeza se estava pronta para ela.
—
Talvez às vezes alguém passe forçando as portas. Martelando os trincos ou
quebrando a madeira.
—
Mas aí a casa vai ficar marcada pra sempre.
—
Exatamente.
O
garoto puxou o rosto dela de volta, buscando naquele olhar o sentido de toda
aquela conversa.
—
Tem outra opção. – pontuou por fim.
—
Qual? – a pergunta dela foi recheada por uma súplica.
—
Às vezes a gente faz uma faxina ou alguma mudança, sabe? Quando a gente limpa
tudo e sai empacotando as coisas, sempre achamos coisas perdidas nessas
situações. A gente pode achar as chaves também.
—
Mas isso pode demorar anos para acontecer.
—
E desde quando chegar ao sótão de qualquer um acontece de forma rápida? O
importante é que uma hora a chave aparece.
—
Tem razão. Se o visitante esperar, uma hora ele chega ao sótão.