quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

O Fantasma da Fada

Esse conto foi feito como presente de amigo secreto para a Lívia Garcia e os personagens são de Cyan (um projeto de livro que ainda estou desenvolvendo), portanto, algumas informações podem estar confusas para os que não sabem sobre sua história.


— Acho que na verdade estou enganada quanto a você, criança.
— Por que todos insistem com essa coisa de criança? - reclamou.
— Porque é o que vocês todos são, mas não conseguem enxergar. Vivemos antes d’A Queda e conhecemos Cyan de uma forma que vocês nunca imaginariam. Alguns viveram mais a transição que a fase boa, mas a maioria de nós, criaturas mágicas, tivemos nossas vidas construídas enquanto o dom perdurava, e aqueles que amávamos foram tirados de nós durante a transação.
— Os humanos também sofreram perdas.
— Mas são nossas espécies que estão sob ameaça, e as nossas famílias é que foram destruídas.
— Não apenas as suas. – corrigiu.
— Tem razão, alguns humanos também perderam, mas diferente de nós, a morte faz parte de suas vidas com muito mais frequência. Suas jornadas são curtas e seus corpos não resistem muitos anos. As gerações mudam rapidamente e a memória também se perde com a mesma facilidade, talvez por isso algumas criaturas tenham suas reservas quanto aos humanos.
— Mas vocês também morrem.
— Sim, no entanto o curso natural é que vivamos centenas e centenas de anos, vocês mudaram isso. Vocês humanos são todos crianças para nós.

Brenton se calou por um momento, como que desistindo de retrucar ou questionar. Se os julgavam tão inexperientes e infantis, como poderiam colocar a responsabilidade dos dons sobre eles? E por que é que tal dádiva fora concedida aos humanos, tornando-os responsáveis pelas criaturas mágicas?
Seus olhos observavam a fada quase estática ao seu lado, sentada de costas para o mar enquanto a brisa balançava suas asas. Não tinha respostas para aquelas dúvidas, mas talvez estivesse fazendo as perguntas erradas.

— Por que acha que está enganada sobre mim? – ele questionou relembrando o início da conversa.
— Acho que me confundi, me deixei levar por minhas memórias e esqueci que você, por mais parecido que seja, não é aquele que uma vez esteve em minha história.

Os olhares se encontraram por um momento, o verde confuso enquanto o lilás apresentava certa inquietação. A fada sorriu e balançou a cabeça levemente, piscando as pálpebras como se alguma lágrima estivesse tentando chegar ao rosto.

— Sabia que apenas humanos se tornam fantasmas? – ela desviou o assunto.
— Não, mas sempre os imaginei como humanos.
— Apenas humanos se tornam fantasmas porque apenas humanos sentem que a vida é curta demais e preferem continuar por aqui. Nós já vivemos tempo demais e sofremos perdas demais para desejar mais tempo nesse mundo.
— E como eles são? – ele deixou a curiosidade falar mais alto.
— São criaturas amarguradas. Eles percebem rapidamente que a morte não é nenhuma punição e que a vida longa não é nenhuma dádiva. Muitos presenciam o fim de seus familiares e ficam presos em seus espectros de semi-vida.
“Cada um é feito para seu próprio tempo. Vocês são preparados para os anos que devem viver, assim como nós. É sempre um erro tentar enganar a morte, e ela sempre cobra suas dívidas.”

Liv levou a mão ao rosto cabisbaixo, os cachos volumosos escondiam seus olhos, mas Brenton tinha quase certeza que os dedos dela limpavam suas lágrimas.

— Quem é que esteve em sua história? – ele voltou ao assunto que ela parecia fugir.
— Seu nome era Bryan e ele era um possuidor antes d’A Queda. – admitiu. – Vocês se parecem em vários aspectos, não apenas no nome.

***

O ar remexeu ao redor da fada e suas asas perderam a estabilidade por um momento. Seus pés tocaram o chão e seus olhos percorreram o lugar tentando encontrar de onde viera a rajada repentina.

— Você sabe que nunca vai conseguir me surpreender fazendo esse alvoroço todo antes de aparecer, Bryan. – ela riu enquanto continuava olhando ao redor.
— Não consigo resistir, desculpe. – um sorriso enfeitava seu rosto.

Ele saiu por entre as árvores com o cabelo bagunçado e um tom brincalhão na face, como de costume. Talvez os humanos realmente fossem para sempre crianças.

— É incrível como vocês, humanos, gostam de reclamar por serem chamados de crianças quando não se importam de se comportarem como tal. – brincou.
— E é incrível como você gosta de deixar clara sua idade avançada. – replicou.

O ar se agitou ainda mais e uma corrente tirou-a do chão, suas asas foram manipuladas pelo vento e seu corpo deslocou-se graciosamente até perto dele. O vento finalmente parou.
Os braços dele envolveram-na num abraço assim que ela se aproximou, tomando cuidado para que as asas continuassem livres. O possuidor puxou-a para mais perto deixando que seus corpos se encontrassem.

— Pelo menos agora é uma criança que sabe controlar o ar com mais suavidade e não tenta arrancar minhas asas com um vendaval. – ela devolveu o sorriso.
— E por acaso a senhorita acredita que crianças podem fazer isso?

Bryan puxou-a suavemente pelo pescoço, trazendo seu rosto para mais perto dele, deixando os lábios se tocarem e mantendo-a junto de si.

***

— Ele tinha um dom raro, podia controlar o ar ao seu redor. – ela sorriu com a lembrança. – Bryan conseguia manipular outros elementos com a força do ar e também era muito útil nas batalhas, podia afastar os inimigos ou impedir que eles tivessem o oxigênio necessário nos pulmões. Mas apenas quando estavam próximos; a distância era sua limitação.
— E o que aconteceu com ele?

Ela suspirou e deixou outra lágrima escapar. Brenton aproximou-se e colocou seu braço em torno da fada, num gesto de conforto.

— Foi mais uma vítima d’A Queda.
— Sinto muito.
— Sinto muito por seus pais.

Os olhares se encontraram novamente. O verde dele no mesmo tom daquele que um dia fora humano, sempre uma recordação para a fada. Liv sorriu para o garoto quase como costumava sorrir para o homem.

— Desculpe, não deveria distrair sua mente com minhas velhas histórias.
— Acredito que eu precisava de alguma distração.
— Prometo que te apresento para ele quando voltarmos à Alvar.
— Apresenta? – a dúvida estampou-se na expressão de Brenton.
— Sim.
— Mas ele não... – ele teve receio de falar.
— Não. – ela entendeu. – Ele escolheu a amargura da semi-vida num espectro no lugar da morte.


quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

A Fúria dos Reis, George R. R. Martin

(contém spoilers de A Guerra dos Tronos)

“Só a morte pode pagar pela vida.” (Jaqen H’ghar)

Neste segundo volume de As Crônicas de Gelo e Fogo, George Martin continua demonstrando seu talento como escritor e comprovando o motivo da série ser tão elogiada em todo o mundo.
Depois de decapitar Eddard Stark, proclamar Renly e Robb como reis e trazer os dragões de volta a vida, A Fúria dos Reis começa em meio à guerra, dor e expectativas para personagens e leitores. Um cometa vermelho brilha no céu e leva para cada um diferentes sinais, mas uma coisa é certa: O Inverno está realmente chegando.

“O inverno chega para todos nós.” (Catelyn Stark)

A guerra domina os Sete Reinos. O Rei do Inverno luta contra os Lannister em busca de vingança, Renly marcha para Porto Real querendo apenas um trono e Stannis tenta juntar um exército para conquistar o poder que acredita ser seu por direito.
Enquanto isso, Arya caminha para casa o mais rápido que pode e Sansa continua prisioneira de Joffrey. E do outro lado do mar, Daenerys cria seus dragões enquanto seus súditos diminuem a cada dia.

“Quero tornar meu reino belo, enchê-lo de homens gordos, belas donzelas e crianças sorridentes. Quero que meu povo sorria quando me vir passar.” (Daenerys Targaryen)

Quem está certo e quem está errado? Isso depende do ponto de vista e todos acreditam carregar a razão consigo. Mesmo que esta razão não seja a honra, mas sim o amor ou a autopreservação.
Afinal, como podemos culpar uma mãe por defender seus filhos e por dar a luz a bastardos quando foi obrigada a casar com um homem que não amava? Ou como negar o desejo de vingança quando seu pai ou irmão está morto injustamente?

“Lugares cruéis geram povos cruéis.” (Meistre Luwin)

E de que adianta rogar aos deuses por sucesso ou misericórdia quando cada rei acredita em uma entidade diferente e todos eles tiveram suas derrotas e vitórias? Como acreditar quando as punições vieram até mesmo para os mais fiéis e puros?
São essas questões que George Martin coloca para todos nós em sua obra e mais uma vez mostra que pontos de vista definem a opinião que se tem sobre as coisas ou o sentimento que cada um merece receber.

“Há um vazio dentro de mim onde um dia tive o coração.” (Catelyn Stark)

E dessa forma o autor constrói mais um volume incrivelmente bom e deixa uma vontade louca de pular para o próximo livro imediatamente. Uma obra escrita em torno do amor, o amor que gera o ódio, o desejo pelo poder, pela vingança ou ainda pela justiça, mas ainda assim, sempre gerados pelo amor.

“O amor é veneno. Um doce veneno, sim, mas mata do mesmo jeito.” (Cersei Lannister)


quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Herança, Christopher Paolini

E finalmente chegou à hora da resenha do último livro do Ciclo A Herança (Eragon, Eldest, Brisingr, Herança), e, pela última vez, aviso que se você ainda não leu os volumes anteriores e não gosta de spoilers, corre lá pra ler e depois vem aqui e compartilha sua opinião.

Herança começa com um gostinho de esperança de que a batalha contra o império pode sim ter os Varden como vencedores, mesmo que eles ainda não saibam exatamente como.
Depois de descobrir que a fonte do poder de Galbatorix vem dos Eldunarí, os corações dos dragões, Eragon percebe que na verdade essa é a força e a fraqueza do rei. Afinal, sem eles o cavaleiro seria como qualquer outro. Mas vamos combinar que não é tão fácil assim descobrir onde o homem guarda centenas de corações e simplesmente se livrar deles.
E é aí que entra finalmente a revelação da segunda parte do comentário que o menino-gato, Solembum, fez lá no primeiro livro:

“Depois, quando tudo parecer perdido e seu poder não for suficiente, vá até a pedra de Kuthian e diga seu nome para abrir o Cofre das Almas.”

E sinceramente, o Eragon foi meio lerdinho pra não perceber que era óbvio que no cofre das almas ele ia encontrar almas. Mas ainda assim, não eram almas de dragões o suficiente, porque Galbatorix continuava tendo muito mais corações que ele.
Então, mesmo ainda sem ter certeza de como poderiam vencer o Rei, aquele era o melhor momento desde o início da série para acreditarem que conseguiriam.
Além de tudo isso, o autor mais uma vez trabalha com capítulos focados em Roran e Nasuada, e principalmente os da Nasuada compõe os melhores momentos da narração (não sei vocês, mas eu simplesmente me apaixonei por ela, por ela e pela Angela, melhores personagens <3).
No entanto, a história finalmente chega ao fim com um gostinho de quero mais, o final não é ruim, mas acho que muitos esperavam ver Eragon e Arya finalmente como um casal, ou pelo menos que o protagonista encontrasse outra mulher para amar. E nesse ponto Paolini me decepcionou um pouquinho, tinha esperança que os dois trocassem pelo menos um beijinho antes do fim (sou romântica sempre, não tem jeito).
Ainda assim, a história é boa e o final também. O autor descobriu uma boa forma de derrotar Galbatorix e uma ótima pessoa para ser um novo Cavaleiro, melhorou muito do primeiro livro até o último, criou mistérios que prenderam a leitura e personagens apaixonantes. E nos agradecimentos ainda revelou que talvez, algum dia, volte a escrever dentro da Alagaësia.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

King And Lionheart

"E como o mundo chegou ao fim
Eu estarei aqui para segurar sua mão
Porque você é meu rei e eu sou o seu coração de leão"
King And Lionheart - Of Monsters and Men

O quarto cheirava a morte.

Simplesmente isso: Morte. Não que a morte pudesse ter algum cheiro específico, era diferente para cada um. Ali, era uma mistura de sangue, sujeira e fumaça, além de algo parecido ao mofo – não devia ser mofo, a janela estava aberta há tanto tempo.
Talvez fosse só a morte impregnando-se aos lençóis. Ou a vida que deixava o corpo e pairava por ali. Vida e Morte, qual era a diferença afinal?

— Não devia permitir que ficasse aqui me vendo morrer quando o reino precisa tanto de você. – ele falou lentamente, cada palavra um martírio.
— E como é que me impediria, meu querido Rei?
— Não impediria, nunca pude impedi-la de nada.
— Pôde me impedir de salvar-te. - não permitiu que fosse ao seu lado para a batalha e talvez isso tenha custado sua vida, ela ponderou, mas não deixou que as palavras deixassem os lábios.

Lianne sabia muito bem que sua perícia poderia salvá-lo, mas o Rei tinha os argumentos certos. Uma Rainha não deveria se misturar à guerra e facilitar o serviço dos inimigos de extinguir a linhagem do trono. Uma Rainha tinha que manter-se firme para as outras mulheres e crianças da corte que não podiam lutar.
Uma Rainha tinha que sobreviver.

— Deixei que meu orgulho me impedisse de tê-la ao meu lado. – os olhos dele mantinham-se fechados enquanto tentava falar o melhor possível.
— E eu deixei que minhas obrigações afastassem minha espada de seus inimigos. – ela apertava as mãos do amado.

Amado. Era tudo que ele era naquele momento, apesar de sempre chamá-lo de Rei ou Vossa Graça, na verdade era apenas seu amado. Nem amante poderia ser, já não havia tempo para aquilo. Amado era mais adequado, mais passado que futuro.
Ele abriu os lábios, mas as palavras não saíram. Apenas um murmúrio sem fundamento. A morte estava próxima demais para palavras.

— Sabe que nunca iria deixá-lo nesse momento, falhei durante a batalha, não repetirei o erro agora.

A Rainha esperou uma resposta. Tudo que ele fez foi fechar os lábios e soltar uma tosse fraca, mais para um sussurro do que outra coisa.
O sangue impregnava seu tronco, a armadura foi removida e o ferimento tratado, mas não fora o suficiente. O gume do inimigo foi fatal, mas aquele era o destino de um Rei afinal.

— Fiz com que seus inimigos pagassem por isso, Vossa Graça. – ela deixou uma lágrima escapar pelas pálpebras e acariciou a mão do Rei. – Seu reino continua vitorioso.

Tinham conseguido vitória, mas de que isso adiantava agora? Lianne preferia que tivesse perecido com ele. Suas vidas foram interligadas e agora a morte chegava apenas para ele. O mundo dele estava terminado e, ainda que com vida, o dela também perderia sua luz pela falta dele em seu campo gravitacional.

— Manterei seu Reino para ti. Sempre. – ela tentou confortá-lo, mas não sabia mais se ele entendia suas palavras.

As pálpebras dele estremeceram e se abriram por um momento, deixando que seus olhos encontrassem os dela numa despedida muda. Os dedos se apertaram uns nos outros com a maior força possível, mas apenas por um breve instante antes de relaxarem completamente. 

— Manterei meu amor por ti, querido. – ela deixou o título de lado. – E manterei minha bravura, juro. – deixou então as outras lágrimas caírem, sabendo que ele não poderia mais vê-las.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Brisingr, Christopher Paolini

Voltando depois de um tempo mais longo do que eu gostaria, como comentado na primeira resenha da série, terminei de reler Brisingr – terceiro livro do Ciclo A Herança (Eragon, Eldest, Brisingr e Herança) – e vim quase correndo fazer o post. Entretanto, mais uma vez aviso que se você ainda não leu os outros volumes da saga e não gosta de spoilers, não vou conseguir fazer a resenha direito sem comentar nada dos acontecimentos passados.

Em primeiro lugar, assim como em Eldest, esse livro também traz um resumo antes do primeiro capítulo, para relembrar os de memória fraca. Ainda como o segundo volume, a melhora na qualidade da escrita de Paolini é aparente, as descrições são mais detalhadas, as cenas de guerra cada vez mais vívidas e os personagens sempre mais envolventes.
Depois de se reencontrar com Roran, Eragon começa Brisingr cumprindo sua promessa de resgatar Katrina e terminando sua vingança contra os Ra’zac, criaturas responsáveis pela morte de Garrow e Brom, além de várias outras maldades (já era hora de dar um fim nessas criaturas horrendas!).
Apesar disso, muitas aflições ainda perturbam a mente do Matador de Espectros. Após ser derrotado por Murtagh e Thorn – cavaleiro e dragão aprisionados pro juramentos e comandados por Galbatorix – na batalha da Campina Ardente, ter perdido sua espada e ainda descobrir seu parentesco com Morzan, Eragon está cheio de incertezas e conflitos internos.
Conflitos estes que em grande parte se resolvem no decorrer do terceiro livro, através de novos ensinamentos de Oromis e Glaedr, revelações de Saphira e um incrível processo de forja.
Contudo, mesmo conseguindo descobrir uma fraqueza contra Galbatorix e vencerem Murtagh com a ajuda de alguns elfos, a guerra ainda está longe de terminar e humanos, anões e elfos têm muito que lutar.
Brisingr é ainda maior que os outros livros do Ciclo, mas cada página é mais empolgante que a outra e personagens antes não tão explorados ganham força e me fazem lembrar porque eu gostei tanto da obra pela primeira vez que li.
Além disso, agora os capítulos não são apenas de Eragon e seu primo, mas alguns também se voltam para a líder dos Varden, Nasuada e Saphira, mostrando um novo ângulo dos acontecimentos e uma pitada da personalidade dos dragões.

Se o ritmo de melhora continuar assim, não tenho dúvida que a saga terá um final maravilhoso e tornará a série uma indicação certa na minha lista.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

A Origem da Sereia

por Lyra M. Deméter

(é gente, Lyra M. de Lívia Garcia, que é como uma irmanzinha <3 e M. Deméter de eu mesma. =P Feliz Natal.)


O barulho na superfície continuava com o mesmo nível de irritação que sempre ocorria naquela época. Um zunzunzum sem fim que apenas humanos eram capazes de fazer e que causava uma desordem mesmo lá no início das profundezas do mar.
Jullie sabia muito bem que não deveria se aproximar daquela raça barulhenta e porcalhona, mas o barulho era tanto que a vontade de deixar-se roçar nas pernas de um ou nos pés de outro era praticamente incontrolável. Ora, ela tinha o direito de ferir ao menos aqueles que ousavam ir fundo demais e importunar seu habitat natural. Aquela era sua casa, não deles.
Ela entendia sem problemas que eles usassem o mar como fonte de diversão durante os dias de férias. Mas ora essa, era noite de Natal! Para os humanos, isso queria dizer ficar em suas casas, com suas famílias, não? Pois então, que fizessem isso e deixassem tanto ela como os outros seres marinhos em paz!

Stella olhava toda a cena com reprovação. Não concordava com a ação dos humanos, mas não concordava com Jullie também. Os humanos eram perigosos. O melhor a fazer seria deixá-los de lado e ir mais fundo no oceano, onde eles não seriam capazes de chegar, e ficar lá até que eles fossem embora.
E era exatamente isso que ela tentava fazer, afinal, era uma estrela-do-mar e o que estrelas-do-mar podem contra os destruidores humanos da natureza? Ela poderia ser pisoteada, chutada, arremessada, ou ainda pior, poderia ficar presa em alguma daquelas coisas brancas que mais pareciam redes sem furos para peixes.
Ainda assim, como poderia ir para a segurança do calmo fundo do mar e deixar sua amiga lá? Jullie era uma água-viva e conseguia se defender, mas suas defesas também poderiam ser a causa de sua morte.
Ela ponderou durante um bom tempo. No geral, mantinha-se longe de humanos e o mais longe possível da superfície. Se permanecesse muito tempo longe da água, morreria, e sabia disso. Mas Jullie não parecia com tanto medo, ou ao menos pensava que o risco valia à pena.
Por fim, decidiu se aproximar, apenas o suficiente. Convenceria Jullie a voltar consigo para o fundo do mar, onde esperariam até que tudo se acalmasse. Mas nada se acalmou, e ela nem mesmo teve a chance de chegar perto.
O zunzunzum de antes foi incrementado pelo barulho da queda, e a primeira coisa que Stella conseguiu visualizar foi uma massa loira que acreditava se chamar cabelo. Depois vieram os braços e pernas cumpridos se debatendo de um lado para o outro e causando reviravolta no mar, impedindo o avanço da estrela.
A água-viva desapareceu de sua visão por alguns segundos, enquanto seus braços mantinham seu equilíbrio no agitar do mar, impedindo-a de se afastar muito ou virar de pernas pro ar.

Jullie sentiu as ondas antes de ver a menina loira, mas isso não impediu que alguns dedos tocassem sua membrana por um instante, fazendo a humana se debater ainda mais. Por ela, a menina continuaria onde estava agora: abaixo da superfície, tentando desesperadamente subir e respirar.
Humanos não costumavam se importar com as criaturas do mar que eles, por vezes, matavam ou tiravam de seu lar para criar em ambientes artificiais. Por que, então, criaturas marinhas deveriam se importar com humanos?

Stella, mesmo que quisesse, não poderia levá-la para a superfície. Não tinha muito que pudesse fazer além de ficar ali e assisti-la se afogar. Entretanto, seu desejo era exatamente o contrário ao da água-viva, queria impedir que a humana se perdesse eternamente entre as correntes marítimas.
Talvez fosse exatamente por isso que ela era uma estrela inofensiva enquanto sua amiga era uma ardente água-viva, Jullie tinha o instinto predatório que Stella nunca teria, instinto esse que várias vezes já salvara sua vida, mas que várias outras a metera em grandes confusões.
Independente do que sua amiga pensasse, ela não deixaria que aquela menina morresse. Afinal, a garota não tinha culpa de pertencer à raça dos barulhentos quebradores de conchas.
Resolveu, então, avisar a Jullie o que resolvera fazer. Avisaria a eles. Era uma medida extrema, mas com ou sem o apoio da amiga sabia que era a única solução, não ficaria parada observando uma humana sofrer daquele jeito. Além do mais, aquilo já havia sido feito antes, qual o problema em fazer mais uma vez?
Concentrou-se em tentar se comunicar com Jullie. Não poderia avisar com palavras como os humanos faziam, é claro, era só uma estrela-do-mar, mas poderia avisá-la através de suas emoções, com uma espécie de imagem mental.
A resposta veio inicialmente em forma de desespero e inquietação, como esperado. A água-viva pouco se importava com vida e morte dos humanos. Mas mesmo ela aos poucos, com os argumentos apresentados por Stella, foi transmitindo um sentimento de compreensão e aceitação, afinal, do pouco que as duas ouviram falar deles, sabiam que salvavam apenas os merecedores de tal dádiva.

A garota loira aos poucos ia afundando, algumas bolhas cada vez mais raras escapando por seus lábios. Após decidirem contatá-los, estrela e água-viva precisavam agir rapidamente.
Jullie se prontificou a trazê-los com toda a força de seus pensamentos e distanciou-se um pouco da menina balançado seu corpo o mais rápido que podia. Não era possível que ouvissem com toda aquela agitação que a humana proporcionava.
Eles não demoraram muito. Se a garota podia ver alguma coisa debaixo d'água, então certamente achava que já estava perdendo o juízo. Tinham idades aparentemente diferentes, mas todos possuíam uma beleza incomparável. Desde as feições humanas extremamente belas até a ponta de suas barbatanas.
O grupo era composto por sereias e tritões, cada qual com escamas de cores diferentes, bem como seus cabelos e olhos. Eles avaliaram a situação por um momento, que parecia breve e ao mesmo tempo eterno. O tempo da humana estava acabando. Por fim, um sentimento de compaixão e bondade espalhou-se, e foi como se isso fosse o suficiente para acalmar tudo ao redor de todos eles.
Mesmo que a humana tivesse visto alguma coisa, já não importava mais. Logo ela deixaria sua humanidade para trás.
As sereias foram as primeiras no ritual, colocaram-se ao redor da garota quase inconsciente e, antes de darem as mãos, começaram a cantar. Os tritões seguiram os movimentos fazendo um circulo externo e mantendo os lábios fechados.
Stella e Jullie nunca tinham visto o processo antes e o canto as deixou maravilhadas. Não era como o som dos humanos. As vozes se propagavam na água com uma leveza aparentemente impossível e, apesar de não soarem completamente claras, a intenção era óbvia e palavras não eram necessárias.
Os tritões, por sua vez, mantinham uma base acústica ainda mais abafada, o timbre grosso soando por trás dos lábios fechados, apenas pelo tremor de suas cordas vocais.
Por fim, um dos tritões se aproximou, ficando no meio do círculo, junto com a garota loira. Não emitia qualquer tipo de som, mas seu olhar era concentrado. Ele fechou os olhos, e levantou a mão em direção a testa da menina. Tocou-a suavemente e da ponta de seus dedos saiu uma forte luz branca, que os envolveu.
Nem Stella nem Jullie sabiam se o brilho poderia ser visto pelos humanos da superfície, mas ambas duvidavam que eles reparassem, se fosse visível, ou que conseguissem enxergar alguma coisa, uma vez que a luz era muito forte; elas mesmas mal conseguiam ver o que se passava lá.
Aos poucos, o som do canto das sereias foi diminuindo, assim como o brilho. Quando tudo acabou, o oceano parecia estranhamente escuro. E, no centro da roda, não estava mais o tritão e a menina quase morta. Mas sim um tritão e uma sereia.
A ex-humana abriu os olhos voltando à consciência, soltou algumas bolhas de ar pela boca no que pareceu uma tosse ou quem sabe um sopro de vida preso à garganta.
Os humanos continuavam com o zunzunzum irritante de sempre, mas nem todos eram os porcalhões barulhentos quebradores de conchas. Talvez, ao contrário do que Jullie e Stella pensavam, os humanos não fossem vilões por completos, alguns ainda valiam à pena salvar, e certamente seriam salvos.
Como aquela menina. Afinal, se ela fosse tudo aquilo, ela teria deixado de existir durante a transformação, pois ao contrário do que diz a lenda, sereias nunca são cruéis.


sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Fantasmas do Século XX, Joe Hill

Fantasmas do Século XX é nada mais nada menos que uma coletânea de 15 diferentes contos de Joe Hill. Eu particularmente nunca fui fã de livros cheios de contos diferentes, sempre preferi a grande e bela história cheia de personagens e reviravoltas – não que contos não possam ter ótimos personagens e reviravoltas, mas é tudo menor e em menos páginas.
Ou seja, tudo isso contribuiu para a demora dessa resenha e também pela opinião que virá a seguir.
Nunca tinha lido nada do Joe Hill e não vou excluir ele da lista de escritores que quero ler por conta de Fantasmas do Século XX, mas preciso admitir que esperava muito mais do livro do que ele realmente é (ou do que eu achei).
Não é que não gostei. A narração é boa, transmite bem as emoções e você se envolve com as histórias, mas em compensação, alguns finais são tão do nada que meus olhos passaram pra linha seguinte esperando continuar a leitura... só que não tinha mais nada pra ler. O que quero dizer é que poxa vida, eu gosto de saber se no fim o protagonista conseguiu sair daquela enrascada, ou se o pai dele morreu, ou se o vilão é que se deu bem. É pedir demais?
Eu gosto de saber o final que o escritor imaginou, independente dos finais que eu possa imaginar durante a leitura. Eu gosto de um final oficial. Fora isso, estou acostumada a ler contos de amigos que escrevem, e alguns deles são mais incríveis do que a maioria dos que estavam nesse livro do Hill.
Entretanto, dois contos desse livro foram simplesmente maravilhosamente maravilhosos, e por culpa deles eu posso falar que gostei do livro, esperava mais, mas gostei.
O primeiro deles é Pop Art, que conta a história de um garoto com um amigo inflável. É, inflável, tipo um balão mesmo, que pode estourar com uma agulha e tudo isso. Como o comentário na introdução, “Pop Art é transcendente”, e completo que é cheio de emoções e de uma amizade adorável.

“Em uma amizade... você só tem permissão para causar uma determinada quantidade de dor. Isso é até esperado. Mas não pode causar nenhum ferimento grave; nunca, em circunstância alguma, deve deixar feridas que irão resultar em cicatrizes permanentes.”
Pop Art.

O segundo é Internação Involuntária, que encerra a coletânea (desconsiderando o conto “bônus” nos agradecimentos). Este se trata da história de Nolan, o qual enfrenta dois desaparecimentos em sua vida e que é irmão de Morris, um garoto teoricamente com problemas mentais, mas que ao mesmo tempo é autor de reflexões cheias de sentido.

“O papai sempre me trazia caixas assim do trabalho dele. Ele sabia. Sabia como é emocionante segurar uma caixa e não ter certeza do que ela contém. Do que pode conter. Um mundo inteiro pode estar guardado lá dentro. Quem poderia saber, vendo de fora? O insípido lado de fora.”
Internação Involuntária.

Enfim, talvez por ter ouvido falar tão bem de Joe Hill, eu tenha esperado muito dos contos, mas independente disso, se você for ler Fantasmas do Século XX, o faça apenas apreciando suas palavras – como elas realmente merecem ser apreciadas –, mas sem esperar histórias super extraordinárias.